Pragmática sobre os excessos nos trajos e outras coisas
Dom Filippe, por Graça de Deus, Rei de Portugal e dos
Algarves etc. faço saber aos que esta Lei virem, que, vendo eu a grande demasia
e excesso que há nos trajos e feitios delles, e como os Reis, meus
predecessores, em diversos tempos proveram nisso por Leis e Pragmaticas que
fizeram, e que todas não bastaram, para deixar de haver os ditos excessos;
querendo eu ora prosseguir o mesmo intento, por fazer mercê aos meus vassallos
destes Reinos, atalhando aos demasiados e desnecessarios gastos e despesas que
se fazem nos ditos trajos; mandei ver todas as Leis e Pragmaticas que se tem
feito sobre esta materia, por pessoas do Meu Conselho, de muita experiencia; e
com seu parecer, respeitando o estado do tempo presente, houve por bem de
mandar provêr nas ditas cousas, e em outras, nesta Lei e Pragmatica, declaradas
pela maneira seguinte.
Primeiramente ordeno e mando que nenhuma pessoa, de qualquer
qualidade que seja possa usar em sua casa, nem fóra della, nem vista, nem traga
cousa alguma de brocado, tella de ouro ou prata ou lavrado de aljôfar em seda
ou pano, passamanes de ouro, e quaisquer outros tecidos com ouro ou com prata,
ainda que as ditas cousas tecidas ou bordadas viessem da India; e toda a mais
obra de fio de ouro ou prata, verdadeiro ou falso, nem de qualquer dourado ou
prateado.
Nem assim poderão usar de esmalte algum mais do que nas
peças que forem de ouro, e que tiverem pedraria; e sendo de ouro sómente, não
poderão ter esmalte; e sómente nos cintilhos, hábitos e anneis, se poderá usar
de esmalte, ainda que não tenham pedraria.
Nos vestidos, nem em outras cousas não poderá pessoa alguma
trazer bordados, fórros, debruns, barras, alamares, lançarias, guarnições de
serrilha, sogilhas, trocellados, pestanas, passamanes, entretalhos, nem
pospontos, posto que as ditas cousas não sejam de seda, e sejam de lã ou
linhas; nem usar de seda emprensada nem sinzellada.
As pessoas que tiverem cavalo poderão trazer quaesquer armas
douradas ou prateadas, e seda nas ditas armas, e nas bandeiras e guiões, sem
entretalho algum; e nas espadas, terçados, punhaes, adagas, talabartes e
telizes; e nos arranjos dos cavallos se poderá trazer o que cada um quizer.
Os Fidalgos nos meus Livros, e os Desembargadores poderão
trazer seda em barretes, gorras, pantufos, sapatos, calças de golpes direitos,
forradas de outra seda com um posponto pela borda, ou passamane ou espiguilha,
ou uma pestana de outra seda – e meias de seda e calções de qualquer seda com
um passamane sómente pelas ilhargas, roupeta de seda forrada de tafetá chão,
guarnecida com um passamane sómente, ou pesponto direito – e da mesma maneira
um gibão de seda, e roupão de seda, com um passamane sómente e alamares,
guarnecido por dentro de outra seda, até largura de tres dedos – e os roupões
de pano poderão ter a mesma guarnição; e nos vestidos de caminho poderão trazer
alamares.
De toda a dita seda e guarnições que se concedem aos
Fidalgos nos meus Livros, e Desembargadores poderão também usar e trazer os
Cavalleiros Fidalgos, e os Cavalleiros confirmados, que uns e outros tiverem
cavallo seu proprio, de estado manteudo em sua casa.
E a mesma seda e guarnições poderão trazer os Cavalleiros
Fidalgos, que andarem no ponto na Côrte, e vencerem minha moradia – e os que
servirem na guerra, pelo tempo que actualmente o fizerem, e um mez antes de
irem, e outro depois de tornarem – e estando assentados nas Companhias, posto
que uns e outros não tenham cavallo seu proprio – e os meus Moços da Camara do
serviço do Paço poderão trazer calças, calções e meias de seda.
Os filhos das ditas pessoas, enquanto estiverem debaixo do
seu poder, não poderão trazer nenhumas das ditas cousas que seus paes podem
trazer, salvo se forem Moços Fidalgos, ou filhos de Fidalgos nos meus Livros,
ou de Desembargadores.
Nenhuma pessoa, de qualquer qualidade que seja, poderá
trazer capa nem capote de seda alguma; nem as que forem de pano ou de qualquer
outra cousa poderão ser forradas de seda – e as capas ou capotes de pano ou de
outra cousa poderão ter até duas bandas de seda por dentro, da largura de tres
dedos cada uma.
As mulheres das ditas pessoas nomeadas, e suas filhas, em
quanto estiverem em suas casas e administração, poderão trazer quaesquer
vestidos de seda, guarnecidos de uma até quatro barras direitas sómente de
outra seda, de largura de tres dedos cada uma, com uma pestana de seda ou
passamane.
E os saios poderão ser forrados de outra seda, todos os
quartos dianteiros sómente (…)
As ditas mulheres poderão trazer em seus toucados igrejaes
qualquer ouro ou prata, e guarnições.
Todas as outras mulheres, ainda que o sejam de officiaes
mecanicos, ou de qualquer outra qualidade, poderão trazer um gibão ou corpinho
de seda, e um sombreiro forrado de tafetá por fóra e por dentro – e nas saias e
vasquinhas de pano ou chamalote, poderão trazer um debrum ou barra direita de
seda pela borda; e não poderão trazer mantas de burato.
Todo o homem de qualquer qualidade que seja, posto não tenha
cavallo, poderá trazer chapéu, forrado por dentro até a borda de tafetá (…)
Nenhum homem, de qualquer qualidade que seja, poderá usar de
couras, coletes, ou qualquer outro vestido, fôrro ou guarnição, nem outra
qualquer cousa, de ambar ou outro perfume, ou polvilhos; e sómente poderão
trazer umas luvas de ambar, ou de qualquer outro cheiro: e di-to sómente
poderão tambem usar as mulheres.
Nenhum homem, de qualquer qualidade que seja, poderá trazer
manteus, nem punhos de guarnição, rendas (…)
nenhum homem, de qualquer qualidade que seja, poderá andar
em andas pela cidade, sem licença minha, que se concederá sómente a pessoas
nobres, que estiverem e forem enfermas; nem em cadeiras cobertas, não passando
de sessenta anos de idade; e os que tiverem menos idade, haverão para isso
licença minha (…)
E de andas poderá toda a pessoa usar por caminho.
As mulheres dos Fidalgos nos meus Livros, e as dos
Desembargadores que actualmente servirem em quaesquer Tribunaes, poderão
sómente andar em andas pela Cidade.
Nenhuma mulher poderá andar em silhão, nem em andilhas de
seda, nem com guarniçoes de prata (…).
As mulheres dos Fidalgos e Desembargadores, e assim as dos
Cavalleiros Fidalgos e Cavalleiros confirmados, se tiverem cavallo seu proprio
de estado, manteudo em sua casa e dos Cavalleiros Fidalgos, que vencerem
moradia e andarem no ponto, e dos que servirem actualmente na guerra, posto que
uns e outros não tenham cavallo seu proprio, poderão andar em cadeiras
cobertas, ou com cortinas de seda, guarnecidas com uma franja de seda sómente
(…) e as mulheres que não forem desta qualidade poderão andar em cadeiras
descobertas.
Nenhuma pessoa, de qualquer qualidade que seja, poderá usar
em sua casa de armações de seda, qualquer que fôr – sómente as pessoas a que se
concede por esta Lei poderem trazer vestidos, de seda, poderão ter em sua casa
e usar de paramentos, cortinas, cobertores, e pavelhões de seda em suas camas
(…)
E das armações de seda e télla, e de quaesquer outras, que,
antes da publicação desta Lei e Pragmatica, estiverem feitas, se poderá usar
ate que se acabem; com declaração que se appresentarão ante os Officiaes da
Justiça (…).
Os estrangeiros, que vierem a estes Reinos poderão trazer e
usar dos vestidos de seda que de fóra trouxerem, por tempo de seis mezes
sómente (…)
E declaro que esta Lei e Pragmatica não comprehende os soldados, ou sejam estrangeiros ou
naturaes, que actualmente servirem nos Presidios destes Reinos e vencerem soldo
nas Companhias delles.
Nenhuma pessoa, de qualquer qualidade que seja, poderá
trazer capuz; porém quando fallecer pai ou mãe, mulher, filho, sôgro ou sógra,
genro ou nóra, irmão ou cunhado, poderá trazer capuz, por tempo de um mez
sómente, não sendo de mais comprimento que até ao artelho; e passado o dito mez
trará capa aberta que não passe de meia perna.
E quando fallecer thio, sobrinho ou primo coirmão, poderão
trazer capa aberta sómente, e roupeta que não passe de meia perna (…).
E nenhuma pessoa poderá trazer dó por mais tempo, que ate
seis mezes, posto que seja das acima declaradas – e poderão trazer dó pelo dito
tempo de seis mezes os seus creados e familiares que com elles estiverem, e
viverem em suas casas ao tempo do fallecimento das pessoas por que se póde
trazer.
E não se poderá trazer dó por outro parente, em qualquer
grau que seja; nem se poderá trazer nos cavallos ou mullas guarnições de
crelhado nem de baeta, nem de outra cousa que se traga por dó (…).
Nenhuma pessoa, de qualquer qualidade, estado e condição que
seja, poderá trazer comsigo mais, que tres pagens a pé, e dous homens de
espóras, e um escravo de mandil, em pellóte, ou com capa; ou em logar delle,
poderá trazer outro homem de espóras – a os Moços Fidalgos, em quanto não forem
casados, ou accrescentados, não poderão trazer mais que um pagem, e um homem de
espóras, além do escravo de mandil; e não trazendo escravo, poderão trazer em
seu logar outro homem.
Hei por bem que as pessoas, que tiverem vestidos e outros
trajos, contra esta Lei e Pragmatica, possam usar delles pelo tempo de um anno
depois da publicação della – e os officiaes que fizerem outros de novo, ou
alguma das outras cousas prohibidas por esta Lei, da publicação della,
incorrerão nas penas, em outra minha provisão declaradas (…).
Dada na Cidade de Lisboa. Duarte Corrêa de Souza a fez, a 29
de Outubro, anno do nascimento de Nosso Senhor Jesu-Christo de 1609 – Rei
Penas correspondentes a esta Pragmática
Eu El-Rei faço saber aos que esta minha provisão virem, que
eu fiz ora uma Lei e Pragmatica, sobre a prohibição e defesa das sedas e
trajos, e outras cousas que nella se contém – e por se não declararem nella as
penas dos transgressores della, e que a não cumprirem e guardarem, e a ordem
que os julgadores hão de ter na condemnação, e modo em que se ha de executar
houve por bem de o mandar declarar por esta.
Primeiramente ordeno e mando que toda a pessoa que usar das
cousas que por a dita Lei e Pragmatica se defendem, em sua casa ou fóra della,
sendo peão, seja preso, e, com pregão em audiencia, vá degradado por um anno
para um dos logares de Africa, e perderá a cousa que lhe fôr coutada, e pagará
vinte cruzados – e sendo pessoa de maior qualidade, será tambem preso, conforme
a sua qualidade na fórma da Ordenação, e degradado por um anno para um dos
logares de Africa, e perderá a cousa que lhe fôr coutada e pagará cincoenta
cruzados; e pela segunda e mais vezes, que uns e outros forem comprehendidos,
se lhes dobrará a pena, assim de dinheiro, como de degredo; e isto sem
remissão.
E por quanto as mulheres não pódem ser condemnadas em pena
de degredo sendo as comprehendidas neste caso mulheres Fidalgas ou mulheres de
Fidalgos ou Desembargadores pagarão, em logar do degredo, mais cincoenta
cruzados, além da pena pecuniaria - e
sendo de menos qualidade, pagarão, em logar do degredo, trinta cruzados – e
ametade das ditas penas, e das peças coutadas, será para o Meirinho, ou
Alcaide, ou qualquer do povo, que as coutar, e a outra ametade para captivos.
Os alfaites e mais officiaes que cortarem, fizerem, ou
concertarem, os trajos pela dita Lei e Pragmatica se defendem, e assim seus
obreiros, serão presos, e incorrerão, pela primeira vez que nisso forem
comprehendidos, em pena de dous annos de degredo para gallés, com baraço e
pregão, sem remissão, e em dez cruzados, pela maneira acima declarada; e pela
segunda e mais vezes, além de incorrerem nas ditas penas, incorrerão mais em
pena de açoutes; e não usarão mais de seus officios nestes Reinos.
E nas mesmas penas incorrerão os ourives de ouro e prata,
douradores e mais officiais todos, que depois da publicação desta Lei e
Pragmatica, fizerem, ou concertarem (…)
E para que venha á noticia de todos, mando etc...
Duarte Corrêa de Sousa a fez, em Lisboa, 29 de Outubro de
1609. - R.
JJAS, 1603 – 1612 pp. 275-281
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