quarta-feira, 2 de outubro de 2019


Pragmática sobre os excessos nos trajos e outras coisas

Dom Filippe, por Graça de Deus, Rei de Portugal e dos Algarves etc. faço saber aos que esta Lei virem, que, vendo eu a grande demasia e excesso que há nos trajos e feitios delles, e como os Reis, meus predecessores, em diversos tempos proveram nisso por Leis e Pragmaticas que fizeram, e que todas não bastaram, para deixar de haver os ditos excessos; querendo eu ora prosseguir o mesmo intento, por fazer mercê aos meus vassallos destes Reinos, atalhando aos demasiados e desnecessarios gastos e despesas que se fazem nos ditos trajos; mandei ver todas as Leis e Pragmaticas que se tem feito sobre esta materia, por pessoas do Meu Conselho, de muita experiencia; e com seu parecer, respeitando o estado do tempo presente, houve por bem de mandar provêr nas ditas cousas, e em outras, nesta Lei e Pragmatica, declaradas pela maneira seguinte.
Primeiramente ordeno e mando que nenhuma pessoa, de qualquer qualidade que seja possa usar em sua casa, nem fóra della, nem vista, nem traga cousa alguma de brocado, tella de ouro ou prata ou lavrado de aljôfar em seda ou pano, passamanes de ouro, e quaisquer outros tecidos com ouro ou com prata, ainda que as ditas cousas tecidas ou bordadas viessem da India; e toda a mais obra de fio de ouro ou prata, verdadeiro ou falso, nem de qualquer dourado ou prateado.
Nem assim poderão usar de esmalte algum mais do que nas peças que forem de ouro, e que tiverem pedraria; e sendo de ouro sómente, não poderão ter esmalte; e sómente nos cintilhos, hábitos e anneis, se poderá usar de esmalte, ainda que não tenham pedraria.
Nos vestidos, nem em outras cousas não poderá pessoa alguma trazer bordados, fórros, debruns, barras, alamares, lançarias, guarnições de serrilha, sogilhas, trocellados, pestanas, passamanes, entretalhos, nem pospontos, posto que as ditas cousas não sejam de seda, e sejam de lã ou linhas; nem usar de seda emprensada nem sinzellada.
As pessoas que tiverem cavalo poderão trazer quaesquer armas douradas ou prateadas, e seda nas ditas armas, e nas bandeiras e guiões, sem entretalho algum; e nas espadas, terçados, punhaes, adagas, talabartes e telizes; e nos arranjos dos cavallos se poderá trazer o que cada um quizer.
Os Fidalgos nos meus Livros, e os Desembargadores poderão trazer seda em barretes, gorras, pantufos, sapatos, calças de golpes direitos, forradas de outra seda com um posponto pela borda, ou passamane ou espiguilha, ou uma pestana de outra seda – e meias de seda e calções de qualquer seda com um passamane sómente pelas ilhargas, roupeta de seda forrada de tafetá chão, guarnecida com um passamane sómente, ou pesponto direito – e da mesma maneira um gibão de seda, e roupão de seda, com um passamane sómente e alamares, guarnecido por dentro de outra seda, até largura de tres dedos – e os roupões de pano poderão ter a mesma guarnição; e nos vestidos de caminho poderão trazer alamares.
De toda a dita seda e guarnições que se concedem aos Fidalgos nos meus Livros, e Desembargadores poderão também usar e trazer os Cavalleiros Fidalgos, e os Cavalleiros confirmados, que uns e outros tiverem cavallo seu proprio, de estado manteudo em sua casa.
E a mesma seda e guarnições poderão trazer os Cavalleiros Fidalgos, que andarem no ponto na Côrte, e vencerem minha moradia – e os que servirem na guerra, pelo tempo que actualmente o fizerem, e um mez antes de irem, e outro depois de tornarem – e estando assentados nas Companhias, posto que uns e outros não tenham cavallo seu proprio – e os meus Moços da Camara do serviço do Paço poderão trazer calças, calções e meias de seda.
Os filhos das ditas pessoas, enquanto estiverem debaixo do seu poder, não poderão trazer nenhumas das ditas cousas que seus paes podem trazer, salvo se forem Moços Fidalgos, ou filhos de Fidalgos nos meus Livros, ou de Desembargadores.
Nenhuma pessoa, de qualquer qualidade que seja, poderá trazer capa nem capote de seda alguma; nem as que forem de pano ou de qualquer outra cousa poderão ser forradas de seda – e as capas ou capotes de pano ou de outra cousa poderão ter até duas bandas de seda por dentro, da largura de tres dedos cada uma.
As mulheres das ditas pessoas nomeadas, e suas filhas, em quanto estiverem em suas casas e administração, poderão trazer quaesquer vestidos de seda, guarnecidos de uma até quatro barras direitas sómente de outra seda, de largura de tres dedos cada uma, com uma pestana de seda ou passamane.
E os saios poderão ser forrados de outra seda, todos os quartos dianteiros sómente (…)
As ditas mulheres poderão trazer em seus toucados igrejaes qualquer ouro ou prata, e guarnições.
Todas as outras mulheres, ainda que o sejam de officiaes mecanicos, ou de qualquer outra qualidade, poderão trazer um gibão ou corpinho de seda, e um sombreiro forrado de tafetá por fóra e por dentro – e nas saias e vasquinhas de pano ou chamalote, poderão trazer um debrum ou barra direita de seda pela borda; e não poderão trazer mantas de burato.
Todo o homem de qualquer qualidade que seja, posto não tenha cavallo, poderá trazer chapéu, forrado por dentro até a borda de tafetá (…)
Nenhum homem, de qualquer qualidade que seja, poderá usar de couras, coletes, ou qualquer outro vestido, fôrro ou guarnição, nem outra qualquer cousa, de ambar ou outro perfume, ou polvilhos; e sómente poderão trazer umas luvas de ambar, ou de qualquer outro cheiro: e di-to sómente poderão tambem usar as mulheres.
Nenhum homem, de qualquer qualidade que seja, poderá trazer manteus, nem punhos de guarnição, rendas (…)
nenhum homem, de qualquer qualidade que seja, poderá andar em andas pela cidade, sem licença minha, que se concederá sómente a pessoas nobres, que estiverem e forem enfermas; nem em cadeiras cobertas, não passando de sessenta anos de idade; e os que tiverem menos idade, haverão para isso licença minha (…)
E de andas poderá toda a pessoa usar por caminho.
As mulheres dos Fidalgos nos meus Livros, e as dos Desembargadores que actualmente servirem em quaesquer Tribunaes, poderão sómente andar em andas pela Cidade.
Nenhuma mulher poderá andar em silhão, nem em andilhas de seda, nem com guarniçoes de prata (…).
As mulheres dos Fidalgos e Desembargadores, e assim as dos Cavalleiros Fidalgos e Cavalleiros confirmados, se tiverem cavallo seu proprio de estado, manteudo em sua casa e dos Cavalleiros Fidalgos, que vencerem moradia e andarem no ponto, e dos que servirem actualmente na guerra, posto que uns e outros não tenham cavallo seu proprio, poderão andar em cadeiras cobertas, ou com cortinas de seda, guarnecidas com uma franja de seda sómente (…) e as mulheres que não forem desta qualidade poderão andar em cadeiras descobertas.
Nenhuma pessoa, de qualquer qualidade que seja, poderá usar em sua casa de armações de seda, qualquer que fôr – sómente as pessoas a que se concede por esta Lei poderem trazer vestidos, de seda, poderão ter em sua casa e usar de paramentos, cortinas, cobertores, e pavelhões de seda em suas camas (…)
E das armações de seda e télla, e de quaesquer outras, que, antes da publicação desta Lei e Pragmatica, estiverem feitas, se poderá usar ate que se acabem; com declaração que se appresentarão ante os Officiaes da Justiça (…).
Os estrangeiros, que vierem a estes Reinos poderão trazer e usar dos vestidos de seda que de fóra trouxerem, por tempo de seis mezes sómente (…)
E declaro que esta Lei e Pragmatica não comprehende  os soldados, ou sejam estrangeiros ou naturaes, que actualmente servirem nos Presidios destes Reinos e vencerem soldo nas Companhias delles.
Nenhuma pessoa, de qualquer qualidade que seja, poderá trazer capuz; porém quando fallecer pai ou mãe, mulher, filho, sôgro ou sógra, genro ou nóra, irmão ou cunhado, poderá trazer capuz, por tempo de um mez sómente, não sendo de mais comprimento que até ao artelho; e passado o dito mez trará capa aberta que não passe de meia perna.
E quando fallecer thio, sobrinho ou primo coirmão, poderão trazer capa aberta sómente, e roupeta que não passe de meia perna (…).
E nenhuma pessoa poderá trazer dó por mais tempo, que ate seis mezes, posto que seja das acima declaradas – e poderão trazer dó pelo dito tempo de seis mezes os seus creados e familiares que com elles estiverem, e viverem em suas casas ao tempo do fallecimento das pessoas por que se póde trazer.
E não se poderá trazer dó por outro parente, em qualquer grau que seja; nem se poderá trazer nos cavallos ou mullas guarnições de crelhado nem de baeta, nem de outra cousa que se traga por dó (…).
Nenhuma pessoa, de qualquer qualidade, estado e condição que seja, poderá trazer comsigo mais, que tres pagens a pé, e dous homens de espóras, e um escravo de mandil, em pellóte, ou com capa; ou em logar delle, poderá trazer outro homem de espóras – a os Moços Fidalgos, em quanto não forem casados, ou accrescentados, não poderão trazer mais que um pagem, e um homem de espóras, além do escravo de mandil; e não trazendo escravo, poderão trazer em seu logar outro homem.
Hei por bem que as pessoas, que tiverem vestidos e outros trajos, contra esta Lei e Pragmatica, possam usar delles pelo tempo de um anno depois da publicação della – e os officiaes que fizerem outros de novo, ou alguma das outras cousas prohibidas por esta Lei, da publicação della, incorrerão nas penas, em outra minha provisão declaradas (…).
Dada na Cidade de Lisboa. Duarte Corrêa de Souza a fez, a 29 de Outubro, anno do nascimento de Nosso Senhor Jesu-Christo de 1609 – Rei

Penas correspondentes a esta Pragmática

Eu El-Rei faço saber aos que esta minha provisão virem, que eu fiz ora uma Lei e Pragmatica, sobre a prohibição e defesa das sedas e trajos, e outras cousas que nella se contém – e por se não declararem nella as penas dos transgressores della, e que a não cumprirem e guardarem, e a ordem que os julgadores hão de ter na condemnação, e modo em que se ha de executar houve por bem de o mandar declarar por esta.
Primeiramente ordeno e mando que toda a pessoa que usar das cousas que por a dita Lei e Pragmatica se defendem, em sua casa ou fóra della, sendo peão, seja preso, e, com pregão em audiencia, vá degradado por um anno para um dos logares de Africa, e perderá a cousa que lhe fôr coutada, e pagará vinte cruzados – e sendo pessoa de maior qualidade, será tambem preso, conforme a sua qualidade na fórma da Ordenação, e degradado por um anno para um dos logares de Africa, e perderá a cousa que lhe fôr coutada e pagará cincoenta cruzados; e pela segunda e mais vezes, que uns e outros forem comprehendidos, se lhes dobrará a pena, assim de dinheiro, como de degredo; e isto sem remissão.
E por quanto as mulheres não pódem ser condemnadas em pena de degredo sendo as comprehendidas neste caso mulheres Fidalgas ou mulheres de Fidalgos ou Desembargadores pagarão, em logar do degredo, mais cincoenta cruzados, além da pena pecuniaria -  e sendo de menos qualidade, pagarão, em logar do degredo, trinta cruzados – e ametade das ditas penas, e das peças coutadas, será para o Meirinho, ou Alcaide, ou qualquer do povo, que as coutar, e a outra ametade para captivos.
Os alfaites e mais officiaes que cortarem, fizerem, ou concertarem, os trajos pela dita Lei e Pragmatica se defendem, e assim seus obreiros, serão presos, e incorrerão, pela primeira vez que nisso forem comprehendidos, em pena de dous annos de degredo para gallés, com baraço e pregão, sem remissão, e em dez cruzados, pela maneira acima declarada; e pela segunda e mais vezes, além de incorrerem nas ditas penas, incorrerão mais em pena de açoutes; e não usarão mais de seus officios nestes Reinos.
E nas mesmas penas incorrerão os ourives de ouro e prata, douradores e mais officiais todos, que depois da publicação desta Lei e Pragmatica, fizerem, ou concertarem (…)
E para que venha á noticia de todos, mando etc...
Duarte Corrêa de Sousa a fez, em Lisboa, 29 de Outubro de 1609. - R.
JJAS, 1603 – 1612 pp. 275-281

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